O autor do ‘Livro do Desassossego’ inspira exposição no Centro Reina Sofía, na Espanha
Enrique Andrés Ruiz | El País
Por pouco que tenhamos frequentado o Livro do Desassossego, cuja autoria Pessoa atribuiu ao ajudante de guarda-livros Bernardo Soares, já saberemos que seu afastamento da vida e da ação comum ele o subtrai às coordenadas precisamente históricas, e que seu incurável exílio da vida espontânea o fez ver refletido no outro e nos outros seu doloroso cativeiro reflexivo. É isso — “o homem completo é aquele que se ignora” — o que afasta sua personalidade criadora do otimismo e da euforia, sejam eles construtivos ou destrutivos, da época das vanguardas, que foi a sua. Caberia ainda reconhecer nele os traços e platônicos e paulinos, ou talvez agostinianos — mas em todo caso existenciais —, de quem sofre por não poder ser um transeunte como outros, com a fé não premeditada que se supõe neles, voltado como eles à ação prática e sem distância consigo mesmo.
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‘Jogo de Damas’ (1927), óleo de Abel Manta | MUSEU NACIONAL DE ARTE CONTEMPORÂNEA DO CHIADO |
De fato, é muito difícil extrair de Pessoa o que em outros chamaríamos “sua estética” se entendermos por isso apenas uma economia própria do significado das formas simbólicas; primeiro porque sua personalidade não consiste em qualquer identidade unitária, mas na subjetividade fragmentada que Ángel Crespo (seu introdutor espanhol, ao lado de José Antonio Llardent) denominou uma “vida plural”. E não apenas pelo desdobramento de seus heterônimos, mas pela angustiada pungência que teria mais afinidade, talvez, com a reflexão ao mesmo tempo política e religiosa do Dostoievski de Os Demônios, por exemplo.
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‘Vendedoras Ambulantes de Peixe’ (1930), de Jorge Barradas. |
Seu grande livro — entre a meia dúzia de grandes livros do século XX —, escrito entre 1912 e sua morte em 1935 (o arco temporal da exposição), começa assim: “Nasci em um tempo em que a maioria dos jovens haviam perdido a crença em Deus, pela mesma razão que os seus maiores a haviam tido — sem saber porquê”. E é esse “sem porquê”, essa alegria pré-reflexiva, que lhe foi proibido e pareceu-lhe tão perdido de origem que qualquer acepção simplesmente desumanizada, ou seja, ativista, malabar e festiva, como a que costumamos atribuir às vanguardas, é muito alheia a ele.
Do que fala — pelo contrário — Soares-Pessoa (seu heterônimo menos heterônimo) é da descontinuidade moderna entre pensamento e ação, depois da qual não apenas Deus — e com Ele, o povo, como diria Dostoievski — foi suplantado pela humanidade, mas que a espontaneidade e a alegria criadoras foram esquecidas como um sonho anterior ao próprio tempo, como Leopardi e Nietzsche já tinham acusado a partir de certa tradição romântica. O poeta sente viver em um tempo que não é o de seu personagem exterior, mas outro a que resolve chamar de “Decadência”, cego, é claro, para qualquer eufórico horizonte como o da vanguarda: “A Decadência é a perda total da inconsciência; porque a inconsciência é o fundamento da vida”.
O que não significa que o “exterior” artístico de seus dias lhe era desconhecido. Como Ramón Gómez de la Serna, batizou alguns ismos (paulismo, sensacionismo, interseccionismo...) mais ou menos à portuguesa. Mas é esse isolamento reflexivo que determina sua relação angustiante com o exterior e o converte em fantasmagórico. Daí o primeiro mérito da reconstrução de um contexto em relação ao qual, não obstante, Pessoa sentiu um desejo infinito de distanciamento e esquecimento. O segundo seria o caráter avassalador da exposição (160 obras, centenas de documentos, revistas, cartas e fotos procedentes da Fundação Gulbenkian e de outros centros como o Pompidou), culminando com a já bem estabelecida presença espanhola de Pessoa e contribuindo para consolidar a presença da particular vanguarda lusa.
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'Portuguesa' (1916), de Robert Delaunay |
Em 1980, pouco antes da publicação do Livro em Portugal, a revista Poesíadedicou um número monográfico a Pessoa; e em 1994 fez o mesmo com aquele que podemos considerar integralmente o Homo vanguardista lusitanensis, José de Almada Negreiros, cuja fecunda estadia em Madri, entre 1927 e 1932, foi recentemente evocada em mesas e publicações espanholas. Foi exatamente Pessoa o primeiro a mencionar a multifacetada condição do pintor, escritor, cenógrafo etecetera Almada na revista A Águia, quando fez sua primeira exposição em 1913, algo em que logo insistiria Gómez de la Serna, que o homenageou em Pombo. Embora na verdade as direções de Pessoa e Almada fossem opostas: o primeiro não é, como o segundo, uma única pessoa na qual se realiza o modelo do novo artista total, mas uma multidão cuja redução à unidade é impossível, exceto em uma dramaturgia.
A grande explosão da vanguarda portuguesa aconteceu ao redor de 1915, por meio das publicações pessoanas Orpheu e Portugal Futurista (Pessoa compartilhou seu único número com Álvaro de Campos — talvez o heterônimo mais vanguardista —, Almada, Mário de Sá-Carneiro, mas também com Apollinaire e Blaise Cendrars). Justamente Cendrars dedicou seus versos a Sonia Delaunay, que ao lado do marido passou uma temporada em Valença do Minho, perto do Porto, colocando Almada em contato com os balés de Diaghilev.
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‘A Vida. Esperança, Amor, Saudade (1899-1901)’, de António Carneiro |
Vestido com uma espécie de macacão, Almada deu uma célebre conferência em 1917 no Teatro da República (“violentamente chutado em sua entrada no palco”) e fez parte do Comitê Futurista de Lisboa com Guillermo Santa-Rita Pintor e Amadeo de Souza-Cardoso, que talvez fosse o pintor mais pintor entre aqueles portugueses, forjado no modernismo e no cubismo. Quanto à presença espanhola entre eles (ou vice-versa: Amadeo tinha frequentado Juan Gris em Paris), Almada e Ramón continuavam a relação — morna — que Pessoa cultivara com os ultraístas Adriano del Valle, Rogelio Buendía e Isaac del Vando-Villar, e a que antes manifestaram Valera junto ao historiador Oliveira Martins e principalmente Unamuno na estreita companhia de Teixeira de Pascoaes ou Eugénio de Castro. Depois do retorno de Almada e da morte de Sá-Carneiro, Amadeo e Santa Rita, o próximo grande momento da vanguarda portuguesa seria testemunhado, desde o fim dos anos vinte, pela revista Presença, que publicou fragmentos daquele Livro póstumo e futuro, do qual nos chega o devastado anseio de alguém perdido em um destempo irremediável.
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